Na escura mata do Rio Doce, com o penetrar dos primeiros raios de sol da manhã, um brilho azul metálico cruza por sobre a serrapilheira em alta velocidade. Ao fazer uma pequena pausa, finalmente podemos entender a forma da criatura que acabara de passar diante dos nossos olhos. Com seu levantar de cauda característico, alternado com movimentos rápidos de seu topete, essa incrível ave espreita cuidadosamente ao redor em busca de suas parceiras indispensáveis na hora de forragear, as taocas.
Utilizando esse bravo exército de formigas como batedoras, essa misteriosa ave se junta a várias outras espécies nesse verdadeiro frenesi. Se movimentando rapidamente pelo solo da mata com sua habitual ligeireza de um papa-léguas, o acanati ou jacu-estalo (Neomorphus geoffroyi) segue devorando pequenos animalejos que tentam desesperadamente fugir da horda de formigas que varre o chão da mata, capturando tudo aquilo que se mexe.
Medindo cerca de 50 cm, dos quais metade corresponde à sua enorme cauda, o jacu-estalo é sem dúvida uma das mais emblemáticas aves que habitam nossas matas [01]. Poucos são os olhos que puderam observar em campo essa magnífica ave, menos ainda se nos concentramos estritamente na subespécie da Mata Atlântica. Sua furtividade é tamanha que um encontro com essa ave certamente pode ser comparado às chances de se acertar na loteria. Solitário, desconfiado e extremamente ágil, o jacu-estalo se movimenta no chão da mata escura com incrível discrição. Ao menor sinal de perigo, segue em disparada numa corrida pelo chão e saltando velozmente de galho em galho pela mata com movimentos que lembram um caxinguelê. Em poucos segundos, a ave se esvai em meio à imensidão da floresta sem se deixar ser visto.
Apesar do nome, o acanati quase nada tem a ver com os jacus (Cracidae). Seus parentes no Brasil são na verdade os anus (Crotophaga), peixes-fritos e o não menos misterioso saci (Tapera naevia). Com esses compartilha alguns detalhes de sua aparência, como o formato do bico, cauda longa e os pés com dois dedos para frente e dois para trás (zigodáctilos). No hemisfério Norte, são aparentados aos papa-léguas (Geococcyx), dos quais seus hábitos se diferem em especial pelo ambiente ocupado por estes, as savanas.
Embora tenha se especializado no solo da mata virgem, para descansar, o acanati prefere se empoleirar em galhos a meia altura, a partir dos quais espreita cuidadosamente, sempre muito desconfiado. À menor excitação, ele levanta seu topete e cauda em movimentos rápidos e alternados [04] e bate seu bico de forma violenta, produzindo um característico estalo. Seu bater de bico por vezes lembra o barulho de queixadas. Tal semelhança é responsável por alguns dos outros nomes que essa ave recebe: jacu-porco, mãe-de-porco e tajaçuíra.
Há quem diga inclusive que seu estalar de bico seja capaz de atrair pra junto de si esses bravos porcos do mato que, assim como as taocas, causam grande alvoroço na mata onde passa, escavando entre raízes no solo, fazendo com que larvas, sementes e frutos se tornem visíveis na serrapilheira e sejam prontamente devorados pelo jacu-estalo. Outra hipótese é que essa semelhança na verdade seja um mimetismo sonoro e sirva como proteção para a ave. Afinal, poucos são os predadores que se arriscariam diante de um bando de queixadas, capaz de revidar com sucesso a ataques de grandes predadores, como as onças-pintadas. Há ainda outra teoria de que esses estalos sejam na verdade uma forma de comunicação mútua, onde a ave atua como uma sentinela para o bando de queixadas em troca do seu trabalho como batedores. Seja como for, a semelhança entre as manifestações sonoras e a associação dessas duas espécies é algo que sempre desperta a curiosidade de pesquisadores e é tema de vários trabalhos. Além de seu clássico estalo instrumental, o jacu-estalo possui um arrulhar grave e monossilábico que é executado quando a ave está no solo.
Vocalização Jacu-estalo (Neomorphus geoffroyi dulcis) por Wagner Nogueira, de WikiAves.com. Acessível em http://www.wikiaves.com/2106387.
Sons instrumentais do Jacu-estalo (Neomorphus geoffroyi salvini) por Jorge Gabriel Campos , XC620761. Acessível em www.xeno-canto.org/620761.
Misterioso, seus hábitos reprodutivos permaneceram incógnitos por anos. Seria ele um parasita de ninhos a exemplo dos peixe-fritos ou incubaria e cuidaria dos filhotes como os anus? Embora a espécie tenha sido descrita em 1820, foi somente em 1944 o primeiro relato indicando cuidado parental por parte da espécie, um avistamento do famoso ornitólogo Helmut Sick, no estado do Espírito Santo, de um casal acompanhado de um filhote, e, somente em 1977, o primeiro relato de um ninho de jacu-estalo.
Para seu ninho, escolhe construir a meia altura, de 2,5 m a 5 m do solo, dependendo da árvore escolhida, geralmente uma Miconia sp. Escolhe nela uma forquilha com dimensões suficientes para estabilizar seu ninho[06]. Seu formato é semelhante a uma tigela oval, construída com pequenos galhos e principalmente folhas. Deposita ali um único ovo branco-creme de formato arredondado [05], do qual zelam por dias, revezando no choco e mudando cuidadosamente a posição para que todos os lados sejam aquecidos por igual. Quando estão no ninho, permanecem abaixados imóveis, de maneira que pouco se vê da ave a não ser o olho e o bico.
Ao longo dos dias, os adultos depositam no ninho folhas verdes, tornando a camada mais espessa, o motivo para isso poderia ser a utilização das folhas como um repelente natural contra parasitas, ou até mesmo aumentar a camada de isolamento térmico, ajudando a manter a temperatura interna do ninho. Embora não se tenha certeza, acredita-se que o tempo de incubação seja de aproximadamente três semanas, ao final das quais, eclode do ovo um pequeno filhote coberto de plumas brancas e de cabeça nua, plumagem esta que em poucos dias dá lugar a uma de coloração negra com um uma crista marcante[02] .
Deixa o ninho em cerca de 20 dias após o nascimento, acompanhado de seus pais que cuidadosamente o acompanham até que esse tenha um tamanho semelhante ao deles mesmos e possa seguir solitário pelas matas, dando sequência ao seu enigmático ciclo de vida.
Referências Bibliográficas:
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Paul Roth, A Nest of the Rufous-Vented Ground-Cuckoo (Neomorphus Geoffroyi), The Condor, Volume 83, Issue 4, 1 November 1981, Page 388, https://doi.org/10.2307/1367515
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