A superfície da água divide dois mundos diferentes que se entrelaçam. Abaixo, no mundo mais viscoso, os peixes florescem. Como em uma guerra entre dois reinos, aves, habitantes do outro mundo, lançam ataques furtivos aos seres aquáticos, que não se deixam vencer facilmente. Mas os cavaleiros do ar são habilidosos guerreiros e desenvolveram diversas técnicas para realizarem ataques bem-sucedidos.
Vestidas elegantemente de branco, as garças são, talvez, as aves pescadoras mais conhecidas. Não perdem a pompa para desferir ataques. Andam na água rasa com passos delicados de bailarinas e arremessam o bico comprido e pontiagudo sobre a presa localizada por seus atentos olhos. [1] Algumas são tão espertas que usam as próprias asas para criar sombra sobre a água e anular o reflexo que a luz causa ao tentar atravessar a barreira que divide os dois mundos.
Pequenas garças do gênero Egretta movimentam freneticamente o pé próximo ao fundo para atrair peixinhos curiosos. Outras dançam uma valsa graciosa sapateando sobre a água rasa para desentocar a presa. Colhereiros rosa peneiram a água com o bico achatado em forma de colher à procura de invertebrados e pequenos peixinhos. Seguem como um batalhão vasculhando toda a lâmina d’água. Socós são como leopardo à espreita. Imóvel como um outeiro, lança seu bico pontiagudo sobre o peixe a partir de um poleiro baixo sobre a água.
No mar alto, corpulentos pelicanos lançam o enorme bico como rede de pesca. A bolsa de pele embaixo do bico retém água, formando um saco cheio de peixes. Quando a água vaza, basta engolir a refeição. Oportunistas andorinhas-do-mar aproveitam a situação para roubar pequenos peixes, pousadas sobre a cabeça do pelicano.
Algumas aves fazem de seu próprio corpo mísseis que se arremessam contra a água, perfurando a superfície e capturando a presa, que tem frações de segundo para perceber o ataque e tentar uma fuga. A partir de um galho sobre a água, o martim-pescador desfere o ataque em um mergulho, descendo como um tiro sobre a água, e, da mesma forma que entrou, sai com o peixe no bico e volta a pousar no poleiro para se alimentar. [2] Bandos de atobás sobre o oceano bravio reconstroem cenas de guerra, bombardeando com violência as torrentes. [3]
Ilustrações por Frederico Blanco/ Revista Uru
Aves de rapina pescam usando as mesmas armas e habilidades que lhes permitem caçar suas presas terrestres. Descem em voo sobre a superfície da água, capturam com as garras afiadas o peixe desavisado que jazia tranquilamente logo abaixo da superfície e seguem o caminho sem nem mesmo interromper o voo. A águia-pescadora chega mesmo a mergulhar quase completamente na água.[4]
Trinta-réis arrebatam peixes da superfície em pleno voo com agilidade e graciosidade. O talha-mar, um parente esquisito, tem o bico altamente especializado para a pesca de superfície e uma técnica inusitada. A mandíbula é bem mais comprida do que a maxila e a ave desliza sobre as ondas com o bico enterrado na água. Qualquer peixe que tocar sua sensível mandíbula é capturado por um lesto fechamento do bico. [5]
Muitas aves atravessam a fronteira ar-água para perseguir o alvo no território dele. São as aves mergulhadoras. Negros bandos de biguás, com plumagem de urubu e voz de porco, mergulham em sintonia como uma infantaria em marcha organizada. O bico é adaptado para segurar o corpo escorregadio do peixe, que se contorce tentando escapar. [6]
A biguatinga, com enorme rabo em leque, esgueira por entre os aguapés com seu pescoço de cobra. O corpo permanece submerso. Mergulha sem esforço, sendo propulsionada pelos pés palmados. Atravessa o peixe com a lança de seu bico e o trás à superfície. Uma manobra ágil do bico no ar trás o peixe direto para dentro da goela.
Ilustrações por Frederico Blanco/ Revista Uru
As alcas, nas águas do oceano bravio, servem-se das asas para o mergulho. Voam sob a água, assim como fazem os pinguins. A propósito, estes são verdadeiros projéteis aquáticos, quando se arremessam da água em direção ao gelo. O voar não lhes faz falta. Em verdade, eles ainda o fazem, mas no mundo viscoso abaixo da marola espumante.
Uma glândula situada na região caudal das aves produz um óleo que, espalhado cuidadosamente na plumagem pelo bico habilidoso, torna as penas impermeáveis. Porém, nem toda ave produz uma quantidade suficiente de óleo para se tornar imune à ação da água. Às vezes nem mesmo é vantagem ser impermeável, principalmente quando a ideia é estar submerso durante a caça, como os biguás e biguatingas.
A permeabilidade obrigou as fragatas a se tornarem os mais engenhosos piratas dos mares. Uma vez que se encharcariam e afogariam se se arriscassem em mergulhos à procura de peixes, se especializaram a capturar peixes não da água, mas do ar. Perseguem outras aves que tenham acabado de sair da água com seu prêmio e as fazem regurgitar o que têm no papo. O pescado é capturado no ar com um ágil mergulho.
Desde as tormentas marítimas até os confins das florestas tropicais, aves de todos os portes aprenderam diversas maneiras de invadir o ambiente aquático e obter de lá seu alimento. E elas o fazem com maestria extraordinária, qualquer que seja a técnica utilizada. As aves dominaram o ar e a água.
Referências bibliográficas:
Sick, H. (1997) Ornitologia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 862p.
The Life of Birds – Fishing for a living / David Attenborough / BBC. Ano: 1998
Comments